Numa altura em que o drama das migrações (sobretudo no Mediterrâneo) está a ordem do dia, o pedroguense Aires Barata Henriques recupera a memória de outras migrações felizmente menos traumáticas. As deslocações sazonais para o Ribatejo e Alentejo (e, por vezes, até para Espanha) eram um fenómeno comum a diversos concelhos da Beira Serra, representando um importante contributo financeiro para o sustento das famílias aldeãs. Em “Os Ratinhos”: o povo serrano por terras do Alentejo e “Borda d’Água”, Aires Barata Henriques recupera em livro alguma da história e histórias sobre este fenómeno, ainda bem presentes nas gerações pampilhosenses mais idosas. Numa conversa em exclusivo ao SERRAS DA PAMPILHOSA, o autor natural do vizinho concelho de Pedrógão Grande explica-nos não só como surgiu esta nova obra, como também nos oferece a sua perspetiva sobre alguns projetos concelhios e regionais.
António Amaro Rosa
Entrevista:
Serras da Pampilhosa – O Aires Henriques é autor de vários livros de história local e regional. Quando surgiu a ideia de publicar um livro dedicado aos “ratinhos” e quais os objetivos visados?
Aires Henriques – A migração dos meus pais para Lisboa, em 1954, quando tinha apenas 7 anos de idade, para que eu pudesse estudar e vir a ser alguém na vida, é porventura a primeira razão para esse estudo. As dificuldades na cidade eram então muitas, mas o regresso à aldeia para um longo período de férias escolares permitiu-me aperceber que muito maior era o sacrifício daqueles que anualmente, anos seguidos, se deslocavam para as planícies do Sul do país para os ingratos trabalhos agrícolas, designadamente das ceifas no Alentejo, das mondas do arroz, da apanha da azeitona e das vindimas em terras da Borda d’Água. Em contacto com os vizinhos regressados, a quem ouvia as suas histórias de vida, fui-me apercebendo de quão sortudo eu era afinal, oriundo de uma família remediada e filho único de pais relativamente mais cultos e esclarecidos, por o meu destino previsivelmente seria outro, protegendo-me os progenitores das maiores agruras desses tempos. Mas o contato na aldeia, ainda que esporádico, com os meninos desses tempos, com quem brincava nos Troviscais, e com quem muito aprendi na arte de caçar com costelos e em regras de entreajuda e sobrevivência, permitiram-me ver que eu não deixava de ser um deles e, apesar de bafejado por outra sorte, de integrar a sua classe de futuros trabalhadores, facultando-lhes a minha compreensão e amizade. Muito mais tarde, a “Revolução dos Cravos” veio-me possibilitar ingressar no Ministério da Agricultura e, percorrendo o país, de ouvir e recordar vários testemunhos das gentes desses difíceis tempos de trabalho e migrações, o que me avivou um maior interesse pelo tema, tanto mais que muitas vezes os testemunhos ouvidos se aparentavam contraditórios, consoante a fonte era a do local de destino ou de origem beirã. Mas a oportunidade para sublinhar da grandeza e denodo dos serranos das Beiras – que virão a apelidar de “ratinhos” ou gaibéus – surgiu após o meu ingresso na Direção da Casa de Pedrógão Grande, em Lisboa, onde tive a felicidade de conhecer o poeta goiense Adriano Pacheco (Paxiano) que, à data, se empenhava em passar ao papel as histórias dos seus conterrâneos, com um enfoque específico nas diversas profissões que, designadamente na sua diáspora lisboeta, lhes foi conhecendo. E assim, em boa hora, em janeiro de 2005, a Casa de Pedrógão Grande editou o conto “O Povo Ratinho”, da sua autoria, o qual beneficiou na sua apresentação da presença de gente ilustre como o Dr. Modesto Navarro, escritor e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, o prof. Carlos Silva, do Instituto Superior de Agronomia, e do prof. Joaquim da Silva Lourenço, ex-Ministro da Agricultura (no Governo da Dr.ª Maria de Lurdes Pintassilgo), o que bem revelou do interesse do tema junto da sociedade portuguesa. Em finais de 2000, em Pedrógão Grande, na unidade de turismo rural “Villa Isaura” já antes havia sido inaugurado o “Solar do Povo Ratinho” como base para a recolha museológica e exposição de um conjunto de objetos pastoris, têxteis e cerâmicos (“pratos ratinhos”), procurando-se sublinhar as vivências dos trabalhadores rurais do nosso país onde, naturalmente, temos as dos originários da região da Serra da Lousã e do Vale do Zêzere. Mas se esta intenção museológica se concretizou por iniciativa particular, já a ideia de promoção de festejos anuais e encontros culturais em redor do tema das migrações não teve o menor acolhimento autárquico local, haja embora um projeto que idealizámos visando a atração ao concelho de Pedrógão Grande das diversas comunidades de emigrantes da região, sabido como é que muitos dos que outrora foram “ratinhos” mais tarde – nos anos 60 do século 20 – tomaram o rumo da Europa, particularmente da França. Seria uma forma de suscitar memórias e o convívio de almas afins, na busca de reencontrar amizades antigas, da troca de experiências e da criação de laços futuros. Mas a então autarquia pedroguense de todo ignorou essa proposta e o seu potencial, cujo grande objetivo visado seria ainda o desenvolvimento regional e o reforço e entrosamento das políticas concelhias locais.
Serras da Pampilhosa – O que pode o leitor encontrar em “Os Ratinhos: o povo serrano por terras do Alentejo e Borda d’Água”?
Aires Henriques – Dista já de 2005, a ideia de complementar esse livro de contos de Adriano Pacheco com uma antologia de textos, de vários outros autores, que melhor ajudassem a compreender o fenómeno das migrações internas e a concretizar as realidades vivenciadas pelos trabalhadores serranos nas longínquas terras das planícies alentejanas e da Borda d’Água. Nesse sentido pedimos então a vários amigos e conterrâneos os relatos possíveis que pudessem conseguir junto de familiares e antigos trabalhadores sazonais (“ratinhos” e “gaibéus”) que tivessem andado por esses destinos de forte labor e sacrifício. Assim o fizemos então junto de Adriano Pacheco (Góis) e de Fernando H. Tomás Coelho (Pedrógão Grande), sendo que este sentira bem novo na pele o custo dessa árdua experiência migratória. Aos seus testemunhos tivemos ainda a possibilidade de juntar a síntese das minhas próprias audições junto de alguns conterrâneos, assim como a de um sacerdote (Anacleto Pires Martins) do Sardoal, que com apenas 10 anos de idade partilhou desse infortúnio. A par desses relatos pessoais, incluímos uma descrição mais geral publicada pelo Museu Municipal de Benavente quanto aos “ranchos sazonais”, bem como a expressão de inquéritos realizados quanto aos alojamentos coletivos dos “ratinhos” nos campos do Sado, da autoria do já citado prof. Carlos Silva. Faculta-se ainda ao leitor, da autoria de Álvaro Cunhal, uma síntese interpretativa do fenómeno do trabalho migratório sazonal nas regiões de grande propriedade do Sul do país, inseridas no seu contexto político-laboral e de inter-relações de classe. Por último, não quisemos deixar de divulgar as intenções subjacentes ao nosso projeto pessoal de criação do “Solar do Povo Ratinho”, como possível esteio de um “Centro Cultural do Migrante Ratinho”, de estudo e debate do fenómeno das migrações sazonais, numa perspetiva em que o museu etnográfico criado no âmbito de “Villa Isaura”, pudesse vir a ser útil para a comunidade académica e escolar da região e para o reforço da promoção turística do concelho de Pedrógão Grande; o que as autoridades autárquicas locais nunca entenderam.
Serras da Pampilhosa – Foi difícil a sua publicação e distribuição? Onde pode o livro ser encontrado?
Aires Henriques – Nos concelhos serranos onde nos inserimos, em que as autarquias locais normalmente carecem de específicas comissões ad hoc viradas para a cultura e a valorização do génio e saber das suas gentes, o incentivo à produção literária e os apoios materiais à edição não existem. Salvo raras exceções, a produção literária que esporadicamente aparece é fruto do interesse de um ou outro cidadão mais vocacionado para o estudo da história, para a literatura ou para as artes, o qual normalmente depende da boa vontade momentânea dos dirigentes autárquicos, da sua identidade ideológica ou partidária, ou da perspetiva de um relacionamento a que não é alheia a futura obtenção de contrapartidas. A ausência de políticas claras e de critérios bem definidos, que evitem tais escolhos, arbitrariedades e decisões menos próprias, é a regra por norma. Assim se explica de algum modo o recente fracasso local do Festival Literário Internacional do Interior, em Pedrógão Grande, onde não estiveram representados os autores locais com maior expressão literária ou artística, nem sublinhados os intrínsecos valores de um passado de afirmação regional e grandeza cívica, tendo sido esquecidos personalidades e escritores de grande valia e autoridade moral como, designadamente, Roberto Pedroso das Neves (de Pedrógão Grande), Francisco Barata Dias (Góis), Hermano das Neves (Alvares) e Tomás da Fonseca (Mortágua). Incompreensivelmente, algumas das autarquias locais – como a de Pedrógão Grande – optaram por ficar de fora, quando tal Festival Literário do Interior visava atenuar os efeitos negativos do recente flagelo dos fogos florestais e se propunha utilizar a cultura, a literatura e as artes como um fator de reanimação da sociedade e de criação de condições para o relançamento social e económico de toda a região. Em face do débil panorama descrito quanto à edição de livros a nível local, como autor tomei a decisão de – em finais do ano transato – abalançar-me na edição de pequenos tomos, com tiragens curtas, entre os 100 e 200 exemplares, afastando a pecha da insensibilidade e desinteresse autárquico, da morosidade, da indecisão e do favor pessoal, sempre gerador de dependências. Assim, a partir de Setembro de 2020, “Villa Isaura” vem publicando as minhas edições de autor: “Leiria no Reviralho – João Lopes Soares às avessas” (texto biográfico sobre esse antifascista e pai do Dr. Mário Soares), “Um Museu Judaico – Uma colecção e um projecto, em Pedrógão Grande, Vila Histórica” e “Uzbert e a Herdade de Pedrógão na Rede dos Castelos e Muralhas na Linha de Defesa Sul do Condado Portucalense” (devendo este livro ser encarado como um incentivo e proposta pessoal para que o Município de Pedrógão Grande candidate a sua Vila Histórica ao Programa da Rede dos Castelos e Muralhas, uma vez preterido o concelho dos apoios financeiros e comunitários geridos através da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Centro (CCDRC). Por último, editámos a antologia de textos que justificou esta entrevista: “Os Ratinhos – O Povo Serrano por Terras do Alentejo e da Borda de Água”. Ainda que a maioria destes trabalhos tenha por destino a oferta a amigos e instituições, uma parte poderá ser adquirida através da Editora Hora de Ler, em Leiria, pelo telemóvel 966739440 ou e-mail horadelercf@gmail.com
Serras da Pampilhosa – Como decorreu a apresentação ao público?
Aires Henriques – Como consta do respetivo prefácio, da autoria do jornalista lousanense Casimiro Simões, esta última obra foi especialmente concebida para apoiar o 25.º Encontro dos Povos da Serra da Lousã, que anualmente tem lugar no belo terreiro do Santo António das Neves, nas imediações do Trevim, e que este ano se realizou a 10 de julho. Depois da contenção imposta pela pandemia, na sua linguagem poética, e porventura porque em 2020 se afoitaram ali aparecer oito cidadãos apenas, Casimiro Simões fala-nos do “regresso em festa ao berço de antigos sacrifícios” que o vizinho pico do Trevim – o mais alto da Serra – nos recorda. Este é o livro antológico em que pela primeira vez se visa associar “serranos” e “ratinhos” e, em comum, celebrar os seus passados de trabalho e sacrifícios nas longínquas planícies transtaganas e terras da “Borda d’Água”. A forma como decorreu o evento está bem documentada no n.º 1461 do quinzenário “Trevim”, de 15 de julho de 2021, onde nos dá conta da presença de mais de uma centena de convivas, alegres e participativos numa causa comum, em que – segundo o eng.º Carlos Fernandes, da “Editora Hora de Ler” (de Leiria) – a obra então editada se apresenta como um “trabalho de importância singular porque reúne num único livro conhecimento especializado e único de vários autores. Embora hoje o fenómeno já não tenha a expressão que tinha, é preciso perceber o que isso significou em termos de migração e as suas consequências. Houve gente que se fixou no Ribatejo e no Alentejo e há costumes que foram daqui lá para baixo”, declarou. O barrete de campino “é da nossa região e não do Ribatejo”, exemplificou o editor, reforçando que é “importante saber que há coisas que têm raízes cá e (que merecem) que se deixem escritas principalmente para as gerações mais novas”. A reação tem efetivamente sido boa, logo a avaliar pelo significativo número de exemplares ali vendidos, pelo que não tendo ainda havido tempo para a sua adequada publicitação aguardamos um bom acolhimento da obra, para mais tratando-se de uma edição limitada…
Serras da Pampilhosa – As antigas migrações acordadas neste novo livro eram um fenómeno comum a vários territórios da Beira Serra. Em sua opinião, os municípios e a sociedade civil têm assegurado a memória destas migrações?
Aires Henriques – A edição de “O Povo Ratinho”, da autoria de Adriano Pacheco e editado pela Casa (regional) de Pedrógão Grande, em Lisboa, exibe uma significativa lista de títulos de livros sobre os trabalhos sazonais de “ratinhos”, “barrões” e “gaibéus”, mas infelizmente nenhum que tenha o patrocínio dos municípios da Beira Serra, da Serra da Lousã ou do Vale do Zêzere. A maioria dos autarcas locais desconhece mesmo a realidade dos seus territórios, até porque foram nascidos depois do fenómeno cessar (década de 1960), dando então lugar às fortes emigrações para França e para a Europa. Mesmo em Pedrógão Grande, um autarca que outrora frequentara a Universidade de Coimbra e a riqueza desse encontro de culturas, de gentes e tradições as mais diversas, vindas dos mais recônditos pontos do país, se mostrou de todo desconhecedor e insensível a tal temática. A cultura, a memória, a participação e a dinâmica dos povos assustam, particularmente quando se é inseguro e estão em jogo interesses pessoais, de grupo ou político-partidários. Depreende-se, pois, de quanto digo que “a memória destas migrações” tem sido totalmente ignorada, apesar do enorme potencial que seria trazer à Região Centro toda essa gente emigrada, pelas mais diversas razões e destinos conhecidos, fazendo das suas diásporas (a nível nacional ou do estrangeiro) uma base importante para o relançamento económico e cultural dos municípios locais. Muito poderia efetivamente ser feito nesta área, caso os autarcas conhecessem o problema e o quisessem aproveitar, até porque é vasto o alcance dessas migrações em termos de formação, abertura dos espíritos, inovação e engrandecimento pessoal. Sem me querer alongar, lembrarei sobretudo as migrações internas como um maiores fatores de coesão nacional e da criação de uma cultura transversal ao país em que, por exemplo, a poética convertida para o cancioneiro popular permitiu que cantigas transmontanas chegassem ao Algarve; ou, ao invés, que o corrido algarvio fosse adotado entre as gentes alentejanas de Ponte de Sor; ou ainda que parte do cancioneiro do Vale do Zêzere se confunda com o minhoto e o que ecoava à noite nos “quartéis” dos “ratinhos” da Borda d’Água. Isso mesmo poderemos verificar em concreto no meu livro “O Canto Popular e as Migrações Internas – Os cancioneiros de Lousada e Pedrógão Grande como elos de tradição, amor e aproximação do povo laborioso”, a editar ainda este ano pelo Município de Lousada. É muito, pois, o que poderia ser feito, como o revelam os autarcas deste distrito do Porto, onde aparentemente impera a organização, o conhecimento e uma estreita ligação com a comunidade escolar, convidada a entrosar-se e a colaborar com os órgãos municipais.
Serras da Pampilhosa – Além de investigador de história local (sobretudo de Pedrógão Grande), Aires Henriques tem dedicado grande parte do seu tempo ao estudo e colecionismo sobre a República e a Maçonaria. Por outro lado, existe a perceção de que, por exemplo, Pampilhosa da Serra, Góis e Oleiros, estando geograficamente afastadas dos centros do poder, terão passado um pouco à margem dessas lutas políticas e da influência maçónica. Será bem assim? São assuntos que carecem de mais investigação?
Aires Henriques – Efetivamente, como diz, tenho dedicado uma grande parte da minha vida ao estudo da região e ao de algumas das suas mais ilustres personalidades que nos honram como serranos e gente culta que, ao longo dos séculos, percorreram e se fixaram um pouco por todo o país. Digamos que nos debruçámos também no estudo dos emigrados “ratinhos” ricos, cultos e de sucesso que fizeram a parte mais visível do país que hoje somos. Assim é que, por exemplo, saídos de Pedrógão Grande e do Vale do Zêzere vamos encontrar em Grândola um dos maiores ideólogos, propagandistas e fundadores da República (José Jacinto Nunes); em Lisboa, no primeiro quartel do século 20, o grande proprietário e dinamizador do jornal republicano “O Século” (José Joaquim da Silva Graça); bem assim como aí se evidencia Casimiro Freire, (nascido em Pedrógão Pequeno), o génio criador da Associação das Escolas Móveis pelo Método de João de Deus que assegurou o processo – expedito e racional – de alfabetização da população portuguesa, dispersa pelos mais diversos e inacessíveis montes e vales deste país. Em termos maçónicos sobressai, por exemplo, o comerciante pedroguense Domingos Luís Coelho da Silva, por mais de uma vez presidente da prestigiada Associação Comercial dos Lojistas de Lisboa e fundador n.º 1 da Respeitável Loja Liberdade, uma das maiores lojas maçónicas que integrou o Grande Oriente Lusitano Unido, maioritariamente composta por irmãos maçons recrutados entre a burguesia comercial lisboeta. Imperdoável seria ainda ignorar o sertaginense Manuel Martins Cardoso que, pertencendo à então Junta Revolucionária, a 5 de outubro de 1910 teve a incumbência de armar os civis revoltosos que se apresentaram na Rotunda (da Avenida da Liberdade, em Lisboa) para combater a Monarquia. Tudo isto, e muitos outros valiosos exemplos de empenho e cidadania, poderão ser encontrados no meu livro “Maçons de Pedra e Cal – A Maçonaria ao Vale do Zêzere” (edição de “Villa Isaura”), onde abordamos ainda a realidade dos concelhos confinantes de Pedrógão Grande, como Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Sertã. Mas, por os não termos estudado, nada poderemos dizer de concreto quanto à participação política de cidadãos com origem nos concelhos da Pampilhosa da Serra, Góis e Oleiros, também eles geograficamente muito afastados dos centros do poder. Nada garante, contudo, como é o caso da Pampilhosa da Serra com o deputado José Maria Cardoso, que as suas gentes tenham passado “à margem dessas lutas políticas e da influência maçónica”. São na realidade assuntos “que carecem de mais investigação”, pois o facto de não serem conhecidas oficinas maçónicas – “lojas” ou “triângulos” – a nível concelhio, nada garante que cidadãos com essa origem serrana, mas com residência em Lisboa, não tenham aí desempenhado relevante atividade política ou maçónica, influenciando o poder instituído em proveito das suas terras ou aldeias de origem.
Serras da Pampilhosa – No âmbito da sua vida profissional, nomeadamente no Ministério da Agricultura, teve oportunidade de acompanhar diversos projetos. Que avaliação faz sobre a ideia de transformar as encostas pampilhosenses viradas para o rio Zêzere em zonas vitivinícolas?
Aires Henriques – Sendo certo que a tradição local desaconselha aparentemente a prática vitivinícola, certo é também que os maus exemplos conhecidos derivam da repetida insistência na plantação de videiras americanas (“produtores diretos”), normalmente garantes de uma maior produção, mas também de um baixo teor (grau) de álcool que não assegura a sua conservação. Trata-se de matéria muito específica que envolve conhecimentos sérios, de base sobretudo experimental, sendo sabido que a ciência agronómica nesta área evoluiu muito e que hoje existem porta enxertos adaptados a vários solos e diferentes ambientes climáticos. A proximidade da Covilhã, do Fundão e da Cova da Beira expressam uma reputação vitivinícola que porventura incentiva a experimentação em áreas geograficamente próximas ou contíguas. É enorme a extensão das “encostas pampilhosenses viradas para o rio Zêzere”, assim como é certamente variado o seu tipo de solos e a exposição ao sol dessas mesmas vertentes. Não será de excluir, portanto, casos de sucesso, mas tal suposição exige investimento e investigação apropriada, recorrendo-se aos técnicos e enólogos mais sabedores que hoje o país faz jus em possuir. Não se tratando, pela minha formação em Economia, a área agronómica aquela em que possa emitir parecer fundamentado, limitar-me-ei a recordar que as encostas do Zêzere oferecem ainda (como opção alternativa ou complementar da produção vitivinícola) reconhecida aptidão para a produção de medronho e o fabrico de aguardente, referenciada como de qualidade. Indiscutivelmente são apostas em que a região deve atentamente ponderar.
Serras da Pampilhosa – Em sua perspetiva, em que medida o rio Zêzere poderia ser aproveitado para unir os concelhos de Pampilhosa, Oleiros e Pedrógão Grande?
Aires Henriques – Na monografia “Pedrógão Grande e o Cabril, de encantos mil”, da minha autoria, a páginas 158 a 162, recordo o papel que o rio Zêzere outrora desempenhou como acessível via de comunicação, ligando por barco as povoações de Pedrógão às dos Padrões, (Vilar da) Amoreira (Portela do Fojo) e Álvaro (Oleiros). Entretanto, a posterior classificação de Pedrógão Pequeno (no concelho da Sertã) e de Álvaro (no de Oleiros) como “Aldeias do Xisto”, mais vem sublinhar da importância de tal projeto, particularmente se houver uma política concertada dos 5 concelhos ribeirinhos (Pedrógão, Góis, Sertã, Pampilhosa e Oleiros) com vista ao incremento do turismo local, à sustentação e rentabilização dessa iniciativa. Por isso, como uma séria achega para o relançamento da Região do Vale do Zêzere, aponto como essencial favorecer a concretização da navegabilidade e exploração turística da albufeira do Cabril, com a ligação regular de barco entre essas povoações, assumindo o poder autárquico em conjunto os inerentes custos de que a experiência careça até à sua definitiva consolidação. Uma outra vertente a explorar com vista à potenciação do desenvolvimento dos três concelhos ribeirinhos, a que devemos juntar Góis e a Sertã, deverá passar igualmente por um melhor aproveitamento da albufeira do Cabril para a pesca embarcada ao achigã, a qual segundo os mais conhecedores na matéria é um verdadeiro “paraíso” para essa prática desportiva. Veja-se, por exemplo, o que afirma o ex-industrial Luís Marques da Cunha. Parafraseando-o, diremos mesmo que se todas as provas que no passado já ali foram realizadas “exprimem da qualidade do trabalho na promoção da Albufeira do Cabril como o paraíso da pesca embarcada ao achigã, bem muito mais temos a esperar do seu potencial e iniciativa locais”. Sobre a mesma monografia, de forma complementar, eu próprio já antes me pronunciei quanto a esse imenso potencial (proporcionado por uma albufeira com cerca de 60 km, banhando esses 5 concelhos ribeirinhos) e sugerindo um “apropriado esforço de entendimento entre os autarcas, os empresários e as associações do Vale do Zêzere”. Em concreto, aventava eu aí a sugestão de se criar uma “Confraria do Achigã e do Peixe do Rio” que, “de modo consistente, congregue regionalmente as melhores vontades dos agentes de desenvolvimento do Vale do Zêzere”. E acrescentava: “Dinheiro não falta certamente. Falta apenas a capacidade de coordenação de esforços e de dinamização das múltiplas ações locais, até agora sustentadas por repetidos e dispersos fundos públicos e comunitários. Que alguém, pois, agarre a sugestão e, a seu tempo, a concretize” a bem do desenvolvimento regional e da promoção turística do promissor Vale do Zêzere.
Serras da Pampilhosa – O livro que agora lançou esgota a temática das antigas migrações sazonais às terras da Borda d’Água e Alentejo? Tem outros projetos em perspetiva?
Aires Henriques – Como já atrás referi, aguarda-se que ainda no decorrer de 2021 o Município de Lousada concretize o lançamento do meu novo livro “O Canto Popular e as Migrações Internas”, em que viso sublinhar “os cancioneiros de Lousada e Pedrógão Grande como elos de tradição, amor e aproximação do povo laborioso” que, através das repetidas migrações sazonais, da música e do canto, espalhou experiências, saber e alegria de lés a lés, enriquecendo indelevelmente o nosso belo cancioneiro popular, que não se esgota na sua grande diversidade regional. A excelente adesão verificada aquando do último Encontro dos Povos da Serra da Lousã, em 10 de julho último, justifica que repitamos a experiência de uma nova antologia sobre “o Povo Ratinho, as suas andanças e vivências”, porquanto de todo – no atual volume – não foi possível dar à estampa um conjunto alargado de textos em que sobremodo se fala de outras experiências, regiões de destino, quadras populares, hábitos alimentares e inesquecíveis maleitas. No sentido de assegurar a genuinidade e qualidade dos textos, iremos procurar que nos cheguem os testemunhos reais de quem, ainda que hoje velhinho, nos queira pacientemente debitar as suas histórias, experiências e memórias de vida. É trabalho em que indiscutivelmente não podemos deixar de contar com os amigos e os amantes destas coisas pois, independentemente da sua coordenação, pretendemos que seja obra comum, de recolha e divulgação, que dignifique a comunidade serrana e os seus viventes, ao mesmo tempo que melhor anime esse seu novo e fraterno (re)Encontro. Esta é a resposta cingida à questão que colocou. Aproveito, contudo, para anunciar que prevejo para o corrente ano a edição de outros livros da minha autoria, sob a forma de edição de autor: “João de Ruão e o Retábulo de N.ªS.ª da Assunção de Pedrógão Grande” (que aborda a obra deixada por esse grande escultor renascentista neste concelho) e “Imagens e Representações no Estado Novo”, com prefácio do prof. Luís Reis Torgal, em que nos propomos divulgar a coleção de objetos deste período existente em “Villa Isaura”, nos Troviscais. Aguardo ainda que, como previsto, o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século 20, ligado à Universidade de Coimbra) concretize o lançamento de uma obra inédita sobre o período da Guerra de Civil em Espanha (1936/1937), a qual contará com o meu contributo interpretativo pessoal, bem como com o do prof. Alberto Pena Rodríguez, da Universidade de Vigo.
Aires Barata Henriques, nascido a 23 de setembro de 1947 em Troviscais Cimeiros, no concelho de Pedrógão Grande, viveu para cima de meio século em Lisboa, onde se licenciou em Economia no ISCEF/ISEG e, a partir daí, desempenhou funções nas delegações de Estocolmo e São Paulo (Brasil) do Fundo de Fomento de Exportação, como inspetor superior principal da Inspeção Geral e Auditoria de Gestão do Ministério da Agricultura e auditor de projetos do Banco Mundial, Banco Africano de Desenvolvimento e União Europeia.
Ao longo das suas viagens pelo país firmou-se como colecionador e estudioso dos ambientes históricos, sociais e etnográficos da Beira Estremenha e da história medieval local, numa perspetiva de defesa e promoção do centro histórico de Pedrógão Grande.
Foi presidente da Casa (regional) de Pedrógão Grande em Lisboa (2004-2016), onde assumiu a coautoria e coordenação de vários livros sobre aspetos e personalidades da região do Vale do Zêzere.
É autor de “Subsídios para um projecto: Pedrógão Grande, a 11.ª Aldeia Histórica”, livro concebido em defesa do património histórico e cultural de Pedrógão Grande; e coautor – numa perspetiva de incentivo aos jovens autores – de “Pestana Júnior, Profeta republicano”, “Pedrógão Pequeno, Jóia do Cabril” e “Pedrógão Grande e o Cabril, de encantos mil”.
Como investigador da História da República e Maçonaria Portuguesa publicou ainda “Um Século (Con)deixas, Liberdade e Bons Costumes”, “Por Montes e Vales – As Escolas Móveis e o Republicanismo no Vale do Zêzere” e “Maçons de Pedra e Cal – A Maçonaria ao Vale do Zêzere” com incidência nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Sertã ; e encontram-se preparados para publicação: “O Canto Popular e as Migrações Internas (os Cancioneiros de Lousada e Pedrógão Grande)” e “Imagens e Representações do Estado Novo”.
Colabora nos “Anais Leirienses – Estudos e Documentos”, assim como a imprensa regional – “Notícias do Pinhal”, “A Comarca” e “O Ribeira de Pera” – tem sido uma das suas formas privilegiadas de intervenção a favor de uma política local de desenvolvimento, progresso e bem-estar. Empenha-se presentemente na candidatura de Pedrógão Grande à “Rede dos Castelos e Muralhas da Linha de Defesa do Mondego”.
Em “Villa Isaura” (Troviscais Cimeiros), onde reside, gere presentemente um conjunto de coleções de cariz etnográfico (têxtil, pastoril, cerâmico, judaico, etc.) e sociopolítico no âmbito dos respetivamente “Núcleo Etnográfico do Povo Ratinho” e do raro “Museu da República e Maçonaria”.
Publicado no Jornal Serras da Pampilhosa de Agosto de 2021
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