Crónica: Pampilhosa Da Serra – Terra Do Nunca

Certamente que o leitor desta crónica já terá visto – talvez até mais vezes do que desejaria – motas de alta cilindrada a percorrer o concelho da Pampilhosa da Serra. A multitudinária concentração de Verão, na vizinha vila de Góis, atrai em Agosto alguns milhares de motociclistas. Mas até nos meses temperados e frios do calendário, o motociclista é uma visão comum nas paisagens deste paraíso da Beira Baixa. Essas meteóricas passagens de motas já terão, porventura, feito o leitor pensar sobre a proveniência e o destino dos seus forasteiros pilotos, até mesmo sobre as suas expressões, escondidas dentro dos capacetes, ou sobre os segredos que encerram estas visitas tão efémeras.

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Com esta crónica, o leitor entenderá que, tal como um veraneante a banhos, que se lança no mar para umas braçadas refrescantes sem pretender chegar a lado nenhum, também o motociclista que cruza o concelho da Pampilhosa da Serra procura só a frescura do impoluto ambiente, e, em vez da mera chegada a um destino, busca a genuína emoção da própria viagem. Voando no tapete de alcatrão, o motociclista é atraído – às vezes vindo de bem longe – pelos incríveis e singulares recortes serpenteantes da rede de estradas do concelho, e muitas vezes é-lhe indiferente que a estrada se torne labiríntica ou ilógica, porque o condão de nela se perder foi justamente o que o levou até lá.

Mas que estranho desígnio é esse, tão avesso a digestões serenas e propenso ao enjoos, que faz o motociclista procurar a maior distância entre dois pontos, a curva? E porque está, o motociclista, disposto a fazer tantos quilómetros para encontrar as melhores curvas, em vez de amplas rectas?

Na nomenclatura de um motociclista, “fazer curvas” é a verdadeira quinta-essência da pilotagem. A explicação é simultaneamente física e emocional. Para um condutor de um automóvel, cuja posição de condução não varia nunca, as curvas supõem sempre uma momentânea e desconfortável projecção do corpo contra uma porta – nas curvas à direita – ou contra um vazio – nas curvas à esquerda. É a força centrífuga a afastar a massa do centro da curva. Já numa mota, isto não sucede. As motas descrevem curvas inclinando-se na direcção do chão, beneficiando assim de outra força, a centrípeta, que as comprime contra o asfalto e faz com que os pneus adiram com maior energia e atrito. A Física é, portanto, amiga das duas rodas.

Para os músculos do corpo humano, as curvas resultam mais cómodas a bordo de uma mota, onde todas as forças são naturais e confluentes, do que a bordo de um automóvel, onde lhes compete o ingrato esforço de contrariar permanentemente um movimento pendular, na ânsia de não deslizar para outro assento. É uma questão de inércias, portanto. Estas inércias, do ponto de vista emocional, são bem mais fáceis de entender. Ao passo que num automóvel as curvas não despertam sensações físicas, porque a estabilidade das quatro rodas assegura o equilíbrio do conjunto, já numa mota – onde o equilíbrio é uma variável – existe uma miríade de reflexos e instintos que são estimulados, a cada fracção de segundo, ao descrever uma trajectória curvilínea. Ao mesmo tempo que travamos ou aceleramos, a inércia radial lança-nos contra o asfalto e tentamos manter o equilíbrio, num jogo espontâneo de forças.

Como as páginas de um livro, também a estrada nos convoca para uma leitura atenta, curva após curva. Confiando nos sentidos, o motociclista lê e interpreta a curva quase irreflectidamente, abordando-a como melhor sabe e pode. Num automóvel, basta girar um volante com os braços. Mas numa mota é o corpo inteiro que se envolve num bailado sincronizado de movimentos. A gestão da distância mais adequada que separa a mota inclinada em relação ao asfalto é uma tarefa que segrega muita adrenalina; e envolve o motociclista num jogo de prudência e de risco, impossível de recriar em quatro rodas. De forma coordenada e fluida, os braços giram o guiador enquanto o tronco se dobra e flecte, qual acordeão, e os joelhos afastam-se e reaproximam-se da mota, como asas, para ajudar na centralização de massas ou mesmo, em alguns casos, para tactear o macadame – servindo de terceiro apoio no chão. Uns metros à frente, prosseguindo a leitura do alcatrão, tudo se repete com nova curva, nova recta, uma subida e uma descida, num harmonioso bailado de velocidade, gravidade e ginástica motora, como quem vira uma página depois de outra, ao devorar um livro, e acelera com cada novo capítulo.

Quem olha o mapa das estradas de Portugal Continental, rapidamente detecta que no epicentro das regiões da Beira Litoral, Beira Baixa e Ribatejo, ou dos distritos de Coimbra, Castelo Branco, Santarém e Leiria, há uma mancha de território que parece geometricamente emoldurada por auto-estradas, deixando um apetitoso miolo livre desse presente envenenado. Diríamos que está imaculada, essa mancha, mas entraríamos numa contradição semântica. Graças a uma topografia adversa, as auto-estradas A1, A25 e A23 mantêm uma veneranda distância à região da Pampilhosa da Serra, e ainda bem que assim é. As ligações rodoviárias ficam, assim, por delegação, confiadas à N112, uma estrada objecto de culto na comunidade motociclista nacional, por ter mais (e melhores) curvas do que a maioria das estradas do território.

Para quem aprecia a condução e está atento à fisionomia de uma estrada, qualquer eixo viário demasiado rectilíneo e plano, que não tenha sido dobrado e engelhado pelo relevo ou domínio de minifúndios, torna-se enfadonho e desprezível. Oferece, apenas, a comodidade de uma viagem segura, rápida e previsível! É certo que todos precisamos de estradas assim, seguras e directas, mas são as velhas estradas complementares, que ao longe lembram serpentinas ao vento, que chamam pelo motociclista experiente.
Vamos esquecer, portanto, aquilo que o Plano Rodoviário Nacional define como rede de itinerários principais, a tal moldura composta pelas auto-estradas “A”, e vamo-nos deter no seu maravilhoso recheio, em cujo centro está a linda vila da Pampilhosa da Serra, e as suas imediações, que oferecem algumas das melhores estradas de Portugal. Tão perfeitas, que parecem ter sido desenhadas à escala das emoções. As mais de três mil curvas e contra-curvas parecem ter sido obra de um artista, e não de um engenheiro.

Não há duas curvas iguais, nem tão-pouco a mesma curva admite uma só abordagem. A riqueza está nessa diversidade, objectiva (porque a curva é diferente) e subjectiva (porque os pilotos lêem-na de forma diferente). E se a esta fria análise de uma trajectória, vista em planta, acrescentarmos o condimento tridimensional do relevo, então inauguramos um maravilhoso mundo novo de ramificações. Por outras palavras, a insípida noção de curva amadurece para patamares de enorme especificidade, e transforma-se como que numa escultura palpável. De facto, uma direita com depressão não se compara a uma direita em declive, da mesma maneira que uma esquerda plana e longa requer um cuidado diferente de uma esquerda cega com lombada no centro. E todas estas ganham nova dimensão quando, cúmplices, resolvem associar-se numa conspiração, nascendo assim as sucessões de curvas e contra-curvas, desafiando a destreza do piloto ao mesmo tempo que o deslumbram. É aqui que a Pampilhosa da Serra e as suas inigualáveis estradas, esgotando todo este glossário da engenharia estradal, têm direito a um protagonismo nacional. E o curioso é que, provavelmente, foi o caos que determinou que havia de ser assim, e não uma vontade dionisíaca da Junta Autónoma das Estradas.

Se a contabilidade da vida não se faz com a quantidade de fôlegos que tivemos, mas com o número de momentos que nos tiraram o fôlego, então a Pampilhosa da Serra é um lugar para equilibrar o orçamento íntimo. Aliás, tal como a Terra do Nunca, onde o Peter Pan nunca cresce ou envelhece, também na Pampilhosa há lugar para uma eterna infância. A metáfora nem é tão exagerada quanto pode parecer, já que é nas vertiginosas velocidades que a Pampilhosa permite, que o motociclista entra no estado de espírito a que o filósofo Milan Kundera se referiu – como ninguém melhor que ele o fez – quando escreveu sobre a imortalidade do motociclista. Parafraseando Kundera, o motociclista em pleno voo só se concentra no momento presente, nesse fragmento de tempo que é o presente, e é arrancado do lapso de passado, presente e futuro, é como que puxado para fora da continuidade do tempo. É desse estado de êxtase que advém a sua percepção de imortalidade, porque se a origem do medo é o futuro, então um homem livre do futuro perde o medo.

O motociclista é, tendencialmente, um hedonista. Corre por gosto. E nunca cansa. Vindo de longe ou de perto, Sul ou Norte, Nascente ou Poente, a viagem até à Pampilhosa da Serra vale por si mesma, razão de sobra para não se ter pressa. Para o motociclista lisboeta, como o autor destas linhas, são duas as horas que tardam em chegar, e por isso a abordagem à Pampilhosa da Serra começa preferencialmente por poente (Coimbra), já nas vizinhanças do meio-dia, porque na ordem de trabalhos está a condução atenta, e é bom nunca ter o sol de frente. Daí, seguimos em direcção à Lousã, ou a Góis, e voamos baixinho pelas estradas que traçam uma linha longitudinal e irreverente até Castelo Branco.

Quando um motociclista resolve passar o dia na Pampilhosa da Serra, sem ter outro destino que não o da própria proveniência – por outras palavras, chegar a casa depois de um dia a afastarmo-nos dela – há paragens fundamentais. O almoço quer-se ligeiro e frugal, sem que seja austero. A digestão é rápida e não interfere com a condução. Uma sandes de queijo serrano na Toca do Judeu, em Cabeçadas, é pois uma boa escolha! Aí, e com duas ou três voluptuosas mulheres de calendário a rivalizar a decoração da parede com uns cornos de gado caçado, trocam-se considerações sobre o tempo com o homem da casa, cuja alcunha de judeu cognominou todos os varões da família, sem de facto o serem. Quem quiser servir-se melhor, tem na Rua da Quinta, em plena vila da Pampilhosa, uma bela casa com pratos bem confeccionados, mais substanciais. A sopa é sempre boa, os pratos são sempre fartos. O preço nunca é injusto.

A paragem que se segue é a da sesta, para quem não a dispensa. E aqui, destaca-se a pequena zona de descanso a poente, junto à estrada, com vista para a Serra do Vale Torto, onde o silêncio impressiona e a frescura do ar revigora. Com dois bancos de madeira compridos, a sesta do motociclista acompanha o repouso da mota, cujo motor crepita como uma lareira, à medida que a temperatura do óleo desce e que os componentes perdem dilatação. Com sorte (e a região normalmente bafeja-nos com sorte), temos tudo por nossa conta. Se assim não for, toca-nos repartir o sossego em partes iguais com outros condutores, como me aconteceu na última incursão. Dois casais franceses, de Lyon, repousavam nas suas auto-caravanas, e aquela propícia envolvência que trás à tona o civismo que a cidade às vezes nos rouba, deu lugar a uma simpática conversa sobre as rotas e destinos comuns, sobre a estrada e a vida, sobre a França e os seus Alpes, onde o signatário também já se aventurou de mota. O casal francês despediu-se, desejando boa viagem. O signatário reciprocou.

A anatomia das estradas da região da Pampilhosa da Serra varia, num impossível movimento perpétuo para melhor. Ao longo da N112, o motociclista desfruta de desafogadas curvas largas e velozes, entre a Lousã e a Pampilhosa, mas também de curvas mais curtas e desafiantes para os lados de Cambas. O novo asfalto na estrada de Oleiros e Estreito, na direcção de Castelo Branco, é propício a boas inclinações, em segurança. Um indisfarçável sentido de omnipotência (aquela percepção de imortalidade) brinda o motociclista quando circula nestas estradas. A falta de trânsito digno de nota, e uma quase permanente visibilidade nas curvas, permitem horas de condução viva e precisa, em permanente estado de deslumbramento e excitação, à razão de dois batimentos cardíacos por segundo. As impolutas vistas e os purificados cheiros da flora tornam a experiência da Pampilhosa em duas rodas numa inacreditável incursão pelo éden. Se a isso acrescentarmos as nuances outonais, quando os tons amarelos, ocres e laranjas da vegetação emprestam uma aura cinematográfica à vida, então o regozijo levanta mesmo voo e reconciliamo-nos com os problemas que trazemos de longe.
É costume dizer-se, na gíria motociclista, que para quem nunca experimentou andar de mota não há explicação possível, e para quem já experimentou… a explicação é dispensável. A Pampilhosa da Serra também encerra um pouco deste mistério inenarrável, mas à conta de vos tentar explicar o que é aos olhos do motociclista, talvez tenha caído, também eu, numa explicação dispensável.

Se o leitor não acreditar que andar de mota pode chegar a ser tão poético, tenho um desafio para lhe lançar. Experimente interpelar o próximo motociclista que vir passar. Se na cara dele vir um rosto de criança na pele de um homem, saberá que tenho razão, é mais um Peter Pan… na vossa Terra do Nunca.

Autor: Eloy Rodrigues

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